“[...] Ninguém muda de posição sobre nada por causa
do sintagma ou do paradigma.” [1]
O que é língua?
Língua é tudo que me
rodeia. Está nas placas pelas ruas, na etiqueta da minha roupa (lembro-me do
poema Eu, etiqueta de Carlos Drummond
de Andrade), nos meus pensamentos – até naqueles que eu nunca ousaria
verbalizar. A língua me constitui, me constrói, me aproxima e me distancia. Me
coloca em interação com o Outro, com “outros”, outros seres, outras ideias,
outros caminhos. Está naquele livro, a gramática, mas está antes de tudo na
ponta da minha língua.
A língua é um
emaranhado de regras e exceções, nomes difíceis - como metaplasmo, sinédoque,
catacrese (?). Mas essa língua, e agora eu sei (!), não é a língua que eu falo
e nem precisa ser, como a professora queria. Essa é a língua culta, padrão,
certa, correta, direita, prestigiada. E como eu não sou nada disso, não preciso
usá-la. Preciso conhecê-la, há sim, para quando, quem sabe, eu tenha que
escrever uma carta para o presidente... ou apenas um currículo para arrumar um
emprego, ou talvez um memorando, um e-mail para o meu chefe. Ou seja, para ser
útil nessa lida capitalista diária.
Mas tem a outra língua,
aquela que eu falo, que eu uso, que me faz ser quem eu sou. A língua tal qual
me expresso aqui, sem muita preocupação com a má fama. A língua mal falada, que
precisou de muitos estudiosos para defendê-la, provando que a variedade não
fazia dela um traste (aqui me recordo de outro poema – Teologia do traste, de
Manoel de Barros), criando até um novo caminho para os estudos linguísticos.
Muitos tentaram
transformar a língua em cálculos matemáticos, em árvores (esquecendo-se dos
frutos, das folhas e, principalmente, das flores), em sistemas. Disseram que
ela serve apenas para comunicar, como um instrumento que se usa para cumprir
uma tarefa. Nos chamaram de locutores, emissores, indivíduos, falantes...
sujeito. Enfim.
A língua, vista de uma forma que deixa
outras de lado[2],
é a condição para que exista possibilidade de discurso e discurso, por sua vez,
é efeito de sentidos entre locutores (Orlandi, 2013). Ela funciona inscrita na
história, nos sentidos, é falha, é relativamente autônoma. É a base material
para os processos discursivos. Dessa
forma, a língua é simbólica, ela faz sentido de diferentes maneiras, para
diferentes sujeitos, interpelados por diferentes ideologias. A língua é o lugar
da ideologia. Para que ela faça sentido, existe um sujeito, que, interpelado
pela ideologia, inscrito na história, a trabalha simbolicamente. E agora,
então, a língua tornou-se algo tão complicado de explicar que penso nem
conseguir (saber) fazê-lo. De fato estava mais simples com a gramática.
A partir dessas tentativas de definição
e da leitura dos textos propostos, o sentido deles (textos) não está nas suas
palavras (língua), e sim nas relações: sujeito – ideologia – história. O texto
do Fernando Sabino traz um sujeito que na posição de poeta, artífice das
palavras, se imagina no controle dos sentidos: “Tento adequar a linguagem
àquilo que ela procura exprimir [...]”. Para Coracini, o sujeito também aparece
no centro, como nos verbos: comunicar, provocar, dizer, sentir, permitir.
Clarice Lispector e João Cabral de Mello Neto têm em comum algo: que o leitor
deve ser atraído pela “isca”, que são as palavras. As palavras e as não-palavras,
as palavras que boiam no papel como as palhas e o eco que surge quando se sopra
o feijão. Palavras escritas e silêncio. A “isca” é o efeito de sentido que o
sujeitor-leitor atribui quando em relação com o texto, em um trabalho de
interpretação, compreensão, que o faz terminar a leitura e depois dela,
transformar-se.
Essa língua, que me permite existir
enquanto sujeito, pode ser a da gramática, pode ser aquela que está na ponta da
minha língua. Não importa. É por meio dela que existo.
Teologia do traste - Manoel de Barros
As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as ideias.
Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as ideias, por serem um objeto abstrato concebido pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Ideias são a luz do espírito - a gente sabe.
Há ideias luminosas - a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba atômica, a bomba atôm.........................................................................................
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as ideias.
Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as ideias, por serem um objeto abstrato concebido pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Ideias são a luz do espírito - a gente sabe.
Há ideias luminosas - a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba atômica, a bomba atôm.........................................................................................
Agora eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
Eu,
etiqueta – Carlos Drummond de Andrade
Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
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