A língua de que se fala
A noção de língua é
central para os estudos da linguagem em todas as suas perspectivas. Desde a
Antiguidade até o século XIX muitos passearam e muitos se firmaram no campo da
Linguística com seus pensamentos que procuravam uma resposta para qual seria a
natureza da linguagem, se a língua é natural ou convencional, sobre a relação
palavra e pensamento, língua e objeto. Questionaram a natureza da língua.
Tentaram explicá-la de forma cartesiana, disseram que a língua é a
representação do pensamento, instituíram o erro e a pureza.
É mais tarde, no século XX, que a Linguística tal como ciência é
inaugurada a partir do Curso de
Linguística Geral, de F. de Saussure. É dele, segundo Sechelaye e Bally
(1916), a definição que estabelece a Teoria dos Signos, e a nova ciência ganha
seu método e objeto: a língua. Saussure diz que a linguagem é dividida em
língua e fala, e que a língua é, então, o objeto da Linguística. Aí está o corte saussureano. Ele define a língua
como um conjunto de convenções adotadas pelo corpo social (massa falante),
afirmando assim que a língua é convencional, é homogênea, é um todo por si:
imanente.
Saussure cria, ou estabelece, diversas dicotomias, tais como: língua e
fala; diacronia e sincronia, paradigma e sintagma, significante e significado,
mutabilidade e imutabilidade. Afirma que na língua só há diferenças. É dos seus
alunos que surge o termo estrutura
para definir a língua, é de Saussure a noção de língua como sistema.
Se a língua para Saussure é sistema, estrutura, unidade, fato social, a
fala é incapaz de ser una, é individual, é inclassificável, inconstante.
Outro teórico da Linguística, Noam Chomsky, estabelece a Teoria da
Sintaxe e define o que é performance e competência. A competência é o objeto
desta teoria, e se define como sendo a capacidade de todo sujeito de produzir e
compreender todas as frases da língua. Descrevendo essa competência temos todas
as regras da língua, sua gramática. Temos aí duas teorias em que a questão de
base é a unidade da língua.
Em outra teoria, a Teoria do Discurso, a língua tem unidade e ordem,
porém não é tida como um sistema perfeito, completo e fechado. A língua é
sujeita a falhas, afetada pela incompletude. E isso não é tomado como defeito
ou erro, antes é próprio da materialidade da língua, a constitui. E falaremos
mais sobre esta língua, tida aqui como nossa noção “escolhida” de língua.
Eni P. Orlandi, em seu livro Língua
brasileira e outras histórias (2009), introduz ao conceito de língua – da
Teoria dos Signos de Saussure - uma distinção, que ela constrói com os nomes de
língua fluida e língua imaginária: esta, a língua do imaginário,
perfeita e una, enquanto aquela, heterogênea, a língua que não se consegue
controlar. A língua imaginária, para
ela, é a língua sistema de regras e fórmulas, “Objetos-ficção que nem por isso
deixam de ter existência e funcionam com seus efeitos no real.” (p 18). A língua fluida, por sua vez, é a língua
em movimento, em constante mudança, que não se deixa imobilizar pelas regras e
fórmulas,
“a que podemos observar quando focalizamos os processos
discursivos, através da história da constituição das formas e sentidos, nas
condições de sua produção, na sociedade e na história, afetada pela ideologia e
pelo inconsciente. A que não tem limites, Fluida.” (idem).
Dessa forma e com essa visão sobre as teorias linguísticas –
algumas, é claro, destacadas aqui – passamos a compreender a língua dentro da
Teoria do Discurso, filiada à Análise de Discurso de tradição francesa, que é
um dos objetivos desse trabalho.
A língua para a Análise de
Discurso
A Análise de Discurso (chamada de AD a partir daqui) entende que a
linguagem, em suas esferas discursivas, é a mediadora entre a realidade do
mundo e o homem. É por meio da linguagem que o homem se constitui como sujeito,
inserido em uma história, em um processo e em condições de produção de
linguagens diferentes.
Como afirma Eni Orlandi (2006), a AD desloca a dicotomia língua e fala,
propondo uma relação não dicotômica entre língua e discurso. Porque, tendo em
vista a noção de língua e fala de Saussure, ao separá-las de maneira
dicotômica, separa também o que é social do que é histórico. E para a AD, no
discurso o social e o histórico são inseparáveis, indissociáveis.
Para Ferreira (2003), em seu artigo O caráter singular da língua na análise do
discurso, a língua passou a ganhar maior importância com Michel Pêcheux,
quando este formulou questões envolvendo o equívoco como fato estruturante da
língua, o que deu lugar para se discutir o real da língua, noção derivada da
psicanálise. “Precisamente da língua e de seu encontro com a história surge a
possibilidade de trabalhar o equívoco, que irrompe como lugar de resistência
inerente à língua e à sua constituição.” (FERREIRA, p. 195-196).
A língua é uma estrutura que tende a regularidades (Milner
apud Ferreira, 1994 {leitura da tese dela}), entretanto essas regularidades podem
ser (e são) afetadas em alguns pontos. São os pontos da falha, de rupturas e do
impossível, que mexem com a estrutura da língua. E isso põe a questão da
completude da língua em xeque. A língua é sim um sistema, mas é um sistema
instável.
É porque não conseguimos dizer tudo que a língua é estudada pelo
analista de discurso diferentemente de que por um linguista que a estuda como
imanente e completa. A língua comporta em si um “não-todo”,
que vem a constituir o seu “real”, como dissemos antes, espaço para o equívoco.
A noção de língua é fundante em AD, pois a língua é a condição de
possibilidade de discurso.
Sendo assim, como
Ferreira afirma em sua tese: “para o analista de discurso a língua não é
objeto, mas pressuposto para analisar a materialidade do discurso.
E, por ai, redefine-se a noção de língua, descentrando-a e remetendo-a a outra
ordem: a ordem do discurso.”.
Algo sobre o discurso
A AD faz a relação da língua com o discurso e a ideologia, porque,
segundo Orlandi, a materialidade da ideologia é o discurso. Então, é no
discurso que a relação ideologia e língua podem ser observadas. Isso se reforça
quando a autora afirma que “o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e
pela ideologia.” (ORLANDI, 2013a, p 20).
Como afirma Orlandi
(2013a, p 15), o discurso é a “palavra em movimento, prática de linguagem” e é
através de sua análise que compreendemos como a língua faz sentido, enquanto
este trabalho simbólico, que constitui o homem social e sua história.
É através do discurso
que é possível transformar a realidade ou mantê-la, e ele é “a base da produção
da existência humana” (ORLANDI, 2013a, p 15). O discurso é tomado como não mera
transmissão de mensagens ele coloca em movimento a relação dos sujeitos com os
sentidos pelos quais são afetados, através de sua história e pela língua. É um
complexo processo, em que “o discurso é efeito de sentidos entre locutores”. (ORLANDI,
2013a, p 21).
Os efeitos de sentido
se relacionam com as condições de produção, condições estas que compreendem
sujeito e situação, envolvem memória e interdiscurso e se filiam a uma
ideologia e se fazem notar pela língua.
Segundo Orlandi
(2013a), o sentido não existe sozinho, ele é reflexo das posições ideológicas
em relação com o processo sócio-histórico em que se dá a produção das palavras.
Ou seja, conforme o sujeito que emprega uma palavra, o sentido muda de acordo com
suas filiações ideológicas. Assim sendo, a formação discursiva determina o que
se diz ou deve ser dito de uma posição ideológica dada. Então, os sentidos
sempre são determinados ideologicamente e “é pela referência à formação
discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes
sentidos” (ORLANDI, 2013, p 44).
O sentido é assim uma
relação determinada do sujeito – afetado pela língua – com a história. É o
gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a
história com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço
da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há
sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados.
Pela língua, pelo processo que acabamos de descrever. (ORLANDI, 2013, p. 47)
Ainda, sobre as condições de produção, Orlandi (2013a, p. 30) afirma que
estas compreendem os sujeitos e a situação. No sentido estrito, tem-se as
circunstâncias da enunciação; em sentido amplo, incluem o contexto
sócio-histórico, ideológico.
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O caráter singular da língua na análise
do discurso. Revista Organon (UFRGS), Instituto de Letras/UFRGS, v.
17, n. 35, p. 189-200, 2003
NUNES, José Horta. O discurso documental na história das ideias linguísticas e o caso dos
dicionários. São Paulo: Alfa, 52 (1): 81-100, 2008.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso in ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES,
Suzy. Introdução às ciências da linguagem
- Discurso e textualidade. Campinas, SP: Pontes, 2006.
ORLANDI, Eni P. Língua
brasileira e outras histórias – discurso sobre a língua e ensino no Brasil.
Campinas, SP: RG, 2009.
______________. Análise
de discurso – princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2013a.
______________. Língua
e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2013b.