7 de out. de 2012

Memórias sentimentais de João Miramar – Oswald de Andrade




Memórias sentimentais de João Miramar – Oswald de Andrade
                                                                                                                            
Heloisa Cristina Rampi Marchioro
           
“Alegria dos que não sabem e descobrem.”
Oswald de Andrade, Manifesto da poesia Pau-Brasil.

            Ler uma obra como Memórias sentimentais de João Miramar torna a literatura algo muito além do linear, rompendo com as estruturas até agora consolidadas. Existe nesta obra algo de tão diferente que a justifica como um marco em nossa literatura: o modo de contar uma história. O enredo é simples. Nas palavras de Antônio Cândido[2] resume-se a: “matrimônio — amante — desquite — vidinha literária — peripécias financeiras”. Há nesta história a clara intenção de fazer uma sátira com a aristocracia brasileira durante o ciclo do café e isto vem ao encontro dos manifestos “Pau-Brasil” e “Antropofagia”, de acordo com Alfredo Bosi[3].

  1. Poesia Pau-Brasil

            O que impressiona na obra, como dito, é a maneira como foi construída. Críticas à sociedade, manifestações contra a ordem das coisas, tudo isso já foi visto antes. Mas Memórias sentimentais de João Miramar é uma obra híbrida, fruto de uma mudança paradigmal:
“Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o estilo fotográfico e a metáfora lancinante”[4]
           
            Segundo Bosi (2005),
           “A “nova revolução” tem sido aclarada pela crítica de tendência estruturalista. (...) Esse tipo de prosa que confina com a condensação poética foi, ao que parece, elaborado simultaneamente com as “palavras em liberdade” de Pau-Brasil. ”.

            Como Oswald diz no Manifesto da Poesia Pau-Brasil[5], “a poesia é feita de fatos (...) são fatos estéticos.” Como a prosa sempre teve a característica da verossimilhança, a poesia pode ficar muito mais livre na fantasia. E o que existe, desde o pré-Romantismo, é um movimento revolucionário do conceito do poético: enquanto a prosa literária tende a poetizar-se, a poesia aproxima-se da prosa literária renunciando aos esquemas de métrica, ritmos e estrofes.

           “A fronteira entre a poesia e prosa literária é bastante fluida, existindo formas intermediárias, chamadas de poemas em prosa ou prosas poéticas.” (D’Onofrio, 2007)

            No seu manifesto, Oswald defende a poesia “ágil e cândida”, “sem arcaísmos, sem erudição”. Pode-se perceber estas características permeando toda a narrativa, como vemos nos fragmentos a seguir escolhidos para a análise.

  1. Miramar

            O primeiro episódio é chamado O Pensieroso – o livro é dividido em 163 deles – Oswald inicia:
“Jardim desencanto
O dever e procissões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistério
Urbanos apitando nas noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
— O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.”[6]

            Os “capítulos instantes”, como denomina Bosi (2005), são a característica marcante da narrativa, e a poeticidade dos episódios iniciais conta a vida do menino João Miramar, que faz um desenho poético em nível descritivo do espaço em que ocorre a narrativa:

“A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história.”[7]


            O nome deste episódio é “Éden”, referência satírica ao paraíso, e desta forma Oswald descreve a cidade onde mora, a cidade que critica e que irá ambientar grande parte da narrativa.
            Durante a viagem do personagem, no episódio 52, chamado “Indiferença”, João Miramar conta sobre a visão de Paris e a saudade do Brasil, de São Paulo:
          
           “(...) Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas
          
           Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
(...)
           Rue de La Paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas.”[8]
           
            A poesia livre se transforma em narrativa e faz o que propõe o manifesto: “anuncia a volta ao sentido puro (...). O melhor de nossa tradição lírica”.  É um contrário entre um país contraditório, atrasado, porém moderno e o primeiro mundo parisiense. “O Brasil profiteur[9]



            No episódio 74, “Sal o may”, mais uma vez Oswald utiliza-se da linguagem poética, com recursos que utiliza muito como a aliteração e a onomatopéia, para desenhar um quadro – de imagens e sons - da sua cidade:

“Os cabarés de São Paulo são longínquos
Como virtudes

Automóveis
E o pisca-pisca inteligente das estradas
Um soldado só para policiar minha pátria inteira

E o gru-gru dos grilos grelam gaitas
E os sapos sapeiam sapas sopas
No alfabeto escuro dos brejos
Vogais

(...)

— Eu não ligo
— Eu quero saber que negócio é esse de esperar com o revólver na estrada
— Aquele capanga preto mandou o braço e a mulher levou um pontapé
— Na barriga
O saxofone obstina uma dor de dentes delirantes
Que o maxixe espasma
Entre tiros e gorjetas
Mas o escapamento aberto escapa
Na noite penitenciária

— Senhor dai-nos o pão-de-ló iluminado da redenção
O Tietê rola rumas de tijolos
Cor-de-água cor-de-rosa”


            Oswald de Andrade soube contar em prosa poética a nossa nação, mas não somente sobre seu espaço moderno, como afirma Bosi (2005), mas também a sua vida colonial e pré-colonial. Nessa combinação entre o modernismo e o primitivismo, que é na realidade o que pregou o manifesto Pau-Brasil, que desponta sua poesia transformada em prosa, ou vice-versa. Como ele mesmo disse ser o “primeiro cadinho de nossa prosa nova.”
Quando se tem o significado de cadinho, muito se entende de sua obra: cadinho é um lugar onde se mesclam ideias diferentes, elementos de origens variadas. “A coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.”[10]

Referências:

Andrade, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. 12 ed. – São Paulo : Globo, 1999.

Andrade, Oswald de. Manifesto da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.

Bosi, Alfredo, História concisa da literatura brasileira, 42 ed. São Paulo : Cultrix, 2005.

D’Onofrio, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.


           



[1] Heloisa Cristina Rampi Marchioro é acadêmica do 7° período do curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês, Câmpus Pato Branco.
[2] Antônio Cândido, "Estouro e Libertação", recolhido em Brigada ligeira, livraria Martins Editora, São Paulo, sem data, pp. 11/30 apud Miramar na Mira - Haroldo de Campos, Apêndice do livro Memórias sentimentais de João Miramar / Oswald de Andrade, 12 ed. São Paulo: Globo, 1999.
[3] Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, 42 ed. São Paulo : Cultrix, 2005.
[4] Prefácio de Memórias sentimentais de João Miramar.
[5] Oswald de Andrade. Manifesto da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
[6] Oswald de Andrade. Memórias sentimentais de João Miramar. 12 ed. – São Paulo : Globo, 1999. p. 45
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] Aproveitador, especulador. Em: Oswald de Andrade. Manifesto da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.

[10] Oswald de Andrade. Manifesto da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.

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