Memórias sentimentais de João Miramar – Oswald de Andrade
Heloisa Cristina Rampi Marchioro
“Alegria dos que não sabem e descobrem.”
Oswald de Andrade, Manifesto da poesia Pau-Brasil.
Ler uma obra como Memórias sentimentais de João Miramar torna a literatura algo muito
além do linear, rompendo com as estruturas até agora consolidadas. Existe nesta
obra algo de tão diferente que a justifica como um marco em nossa literatura: o
modo de contar uma história. O enredo é simples. Nas palavras de Antônio
Cândido[2]
resume-se a: “matrimônio — amante — desquite — vidinha literária — peripécias financeiras”.
Há nesta história a clara intenção de fazer uma sátira com a aristocracia
brasileira durante o ciclo do café e isto vem ao encontro dos manifestos
“Pau-Brasil” e “Antropofagia”, de acordo com Alfredo Bosi[3].
- Poesia Pau-Brasil
O que impressiona na obra, como
dito, é a maneira como foi construída. Críticas à sociedade, manifestações
contra a ordem das coisas, tudo isso já foi visto antes. Mas Memórias sentimentais de João Miramar é
uma obra híbrida, fruto de uma mudança paradigmal:
“Esperemos
com calma os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o
estilo fotográfico e a metáfora lancinante”[4]
Segundo
Bosi (2005),
“A “nova revolução”
tem sido aclarada pela crítica de tendência estruturalista. (...) Esse tipo de
prosa que confina com a condensação poética foi, ao que parece, elaborado
simultaneamente com as “palavras em liberdade” de Pau-Brasil. ”.
Como
Oswald diz no Manifesto da Poesia
Pau-Brasil[5],
“a poesia é feita de fatos (...) são fatos estéticos.” Como a prosa sempre teve
a característica da verossimilhança, a poesia pode ficar muito mais livre na
fantasia. E o que existe, desde o pré-Romantismo, é um movimento revolucionário
do conceito do poético: enquanto a prosa literária tende a poetizar-se, a
poesia aproxima-se da prosa literária renunciando aos esquemas de métrica,
ritmos e estrofes.
“A fronteira entre a
poesia e prosa literária é bastante fluida, existindo formas intermediárias,
chamadas de poemas em prosa ou prosas poéticas.” (D’Onofrio, 2007)
No
seu manifesto, Oswald defende a poesia “ágil e cândida”, “sem arcaísmos, sem
erudição”. Pode-se perceber estas características permeando toda a narrativa,
como vemos nos fragmentos a seguir escolhidos para a análise.
- Miramar
O
primeiro episódio é chamado O Pensieroso
– o livro é dividido em 163 deles – Oswald inicia:
“Jardim
desencanto
O dever
e procissões com pálios
E
cônegos
Lá fora
E um
circo vago e sem mistério
Urbanos
apitando nas noites cheias
Mamãe
chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
— O
Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.”[6]
Os
“capítulos instantes”, como denomina Bosi (2005), são a característica marcante
da narrativa, e a poeticidade dos episódios iniciais conta a vida do menino
João Miramar, que faz um desenho poético em nível descritivo do espaço em que
ocorre a narrativa:
“A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha
cara de bichos esquisitos e animais de história.”[7]
O
nome deste episódio é “Éden”, referência satírica ao paraíso, e desta forma Oswald
descreve a cidade onde mora, a cidade que critica e que irá ambientar grande
parte da narrativa.
Durante
a viagem do personagem, no episódio 52, chamado “Indiferença”, João Miramar conta
sobre a visão de Paris e a saudade do Brasil, de São Paulo:
“(...)
Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas
Nostalgias
brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
(...)
Rue
de La Paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como
lembranças achadas.”[8]
A
poesia livre se transforma em narrativa e faz o que propõe o manifesto:
“anuncia a volta ao sentido puro (...). O melhor de nossa tradição lírica”. É um contrário entre um país contraditório,
atrasado, porém moderno e o primeiro mundo parisiense. “O Brasil profiteur[9]”
No episódio 74, “Sal
o may”, mais uma vez Oswald utiliza-se da linguagem poética, com recursos que
utiliza muito como a aliteração e a onomatopéia, para desenhar um quadro – de
imagens e sons - da sua cidade:
“Os cabarés de São Paulo são longínquos
Como virtudes
Automóveis
E o pisca-pisca inteligente das
estradas
Um soldado só para policiar minha
pátria inteira
E o gru-gru dos grilos grelam gaitas
E os sapos sapeiam sapas sopas
No alfabeto escuro dos brejos
Vogais
(...)
— Eu não ligo
— Eu quero saber que negócio é esse de
esperar com o revólver na estrada
— Aquele capanga preto mandou o braço e
a mulher levou um pontapé
— Na barriga
O saxofone obstina uma dor de dentes
delirantes
Que o maxixe espasma
Entre tiros e gorjetas
Mas o escapamento aberto escapa
Na noite penitenciária
— Senhor dai-nos o pão-de-ló iluminado
da redenção
O Tietê rola rumas de tijolos
Cor-de-água
cor-de-rosa”
Oswald de Andrade soube contar em
prosa poética a nossa nação, mas não somente sobre seu espaço moderno, como
afirma Bosi (2005), mas também a sua vida colonial e pré-colonial. Nessa
combinação entre o modernismo e o primitivismo, que é na realidade o que pregou
o manifesto Pau-Brasil, que desponta
sua poesia transformada em prosa, ou vice-versa. Como ele mesmo disse ser o
“primeiro cadinho de nossa prosa nova.”
Quando
se tem o significado de cadinho, muito se entende de sua obra: cadinho é um
lugar onde se mesclam ideias diferentes, elementos de origens variadas. “A
coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução
geral. Poesia Pau-Brasil.”[10]
Referências:
Andrade, Oswald
de. Memórias sentimentais de João Miramar.
12 ed. – São Paulo : Globo, 1999.
Andrade, Oswald
de. Manifesto da poesia Pau-Brasil.
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
Bosi, Alfredo, História concisa da literatura brasileira,
42 ed. São Paulo : Cultrix, 2005.
D’Onofrio, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São
Paulo: Ática, 2007.
[1] Heloisa Cristina Rampi Marchioro é acadêmica do 7°
período do curso de Licenciatura em Letras Português-Inglês, Câmpus Pato
Branco.
[2] Antônio Cândido, "Estouro e Libertação",
recolhido em Brigada ligeira, livraria Martins Editora, São Paulo, sem
data, pp. 11/30 apud Miramar na Mira
- Haroldo de Campos, Apêndice do livro Memórias sentimentais de João Miramar /
Oswald de Andrade, 12 ed. São Paulo: Globo, 1999.
[3] Alfredo Bosi, História
concisa da literatura brasileira, 42 ed. São Paulo : Cultrix, 2005.
[4] Prefácio de Memórias
sentimentais de João Miramar.
[5] Oswald de Andrade. Manifesto
da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
[6] Oswald de Andrade. Memórias
sentimentais de João Miramar. 12 ed. – São Paulo : Globo, 1999. p. 45
[9] Aproveitador, especulador. Em: Oswald de Andrade. Manifesto da poesia Pau-Brasil. Correio
da Manhã, 18 de março de 1924.
[10] Oswald de Andrade. Manifesto
da poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
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