4 de jul. de 2010

O Salto

Banda: O Rappa

Compositores: Marcos Lobato / Carlos Pombo

As ondas de vaidade

Inundaram os vilarejos

E minha casa se foi

Como fome em banquete

Então sentei sobre as ruínas

E as dores como o ferro a brasa e a pele

Ardiam como o fogo dos novos tempos

E regaram as flores do deserto

E regaram as flores com chuvas de insetos

Mas se você ver

Em seu filho

Uma face sua

E retinas de sorte

E um punhal reinar

Como o brilho do sol

O que farias tu?

Se espatifaria

Ou viveria

O Espírito Santo?

Aos jornais

Eu deixo meu sangue

Como capital,

E as famílias o punhal

À corte eu deixo o sinal, sinal!

A música O Salto é a faixa 10 do disco O Silêncio Q Precede o Esporro, gravado em 2003, pela banda O Rappa. Para uma análise mais aprofundada em todos os seus detalhes, foi visto o videoclipe da música, gravado em 2004, que complementa o sentido da canção.

Como a letra desta música é uma crítica social e essa é a principal característica da banda O Rappa, se faz necessário um breve comentário sobre seu contexto histórico.

A história é ambientada no início dos anos 90 (tempo diegético), quando toma posse o primeiro presidente eleito por voto direto após quase 30 anos de ditadura militar no Brasil. É com o discurso de posse de Fernando Collor de Mello, onde ele fala, inflamado: “... e assumo o dever, como o desafio de um novo tempo, o desafio de um Brasil novo que prometi...” que inicia a história do personagem da letra.

O presidente foi, em 92, afastado do cargo, acusado de corrupção. A força da mídia que o colocou no poder, fazendo de Collor o grande caça-marajás e paladino do povo brasileiro, o derruba, publicando denúncias a seu respeito, que servem como gota d’água para a Câmara dos Deputados, que vota seu impeachment.

O cenário da música brasileira dos anos 90 é muito rico, pois com a inauguração do canal MTV, novos talentos ganharam espaço fora da Rede Globo (principal veículo até então, em virtude das telenovelas). A música desse período é chamada de música popular urbana, e recebe influência de diversos ritmos, tais como: o maracatu (Nação Zumbi), o choro, o samba, a capoeira, no Brasil e dos Estados Unidos o heavy-metal, o rock progressivo, o pop-rock, o rap, o reagge e o funk. E ainda a influência da música eletrônica: o house e o drum & bass.

Analisando…

Segundo D’Onofrio, as modalidades de análise podem se dividir em crítica extrínseca e crítica intrínseca e dentro deste último o enfoque estilístico.

Este texto será analisado segundo o plano da enunciação, que estabelece relações entre o emissor e o receptor.

O texto foi dividido em quatro partes, tomando como parâmetro as falas do narrador ou eu-lírico.

As ondas de vaidade

Inundaram os vilarejos

E minha casa se foi

Como fome em banquete

Então sentei sobre as ruínas

E as dores como o ferro a brasa e a pele

Ardiam como o fogo dos novos tempos

O texto é construído com metáforas, e nessa primeira parte da música, a alegoria mostra ondas de vaidade destruindo casas, e o eu-lírico (o texto está em 1a pessoa) sentado sobre as ruínas, sofrendo as dores de um novo tempo.

A vaidade pode fazer referência ao presidente Collor, já que ele se utilizou tanto de sua imagem para conseguir conquistar o voto do povo. Esse mesmo presidente, derrubando as casas, destruindo lares, com sua fome de poder. E os novos tempos esperados não chegam. Só chega a dor que arde como fogo, a brasa e a pele.

E regaram as flores do deserto

E regaram as flores com chuvas de insetos

Esse trecho, que é o refrão da letra, está na 3a pessoa, indefinindo o sujeito. Regaram as flores do deserto, ou seja, não se sabe que tem a culpa de não ter feito nada, pois o ato de regar flores no deserto, é uma metáfora, diz respeito a fazer algo inútil ou mesmo não fazê-lo.

Ainda reforça a idéia com a parte seguinte, que fala E regaram as flores com chuvas de insetos, a intenção é de acabar com as flores. Por ingenuidade ou não, o eu-lírico se exime da culpa, pela vaidade que o poder lhe dá, no caso aqui o poder do voto, ou pelo medo de assumir o erro do ‘mau’ voto.

Mas se você ver

Em seu filho

Uma face sua

E retinas de sorte

E um punhal reinar

Como o brilho do sol

O que farias tu?

Se espatifaria

Ou viveria

O Espírito Santo?

Aqui, o texto ganha uma inversão, pois apresentado o problema, o eu-lírico se volta para o leitor-ouvinte e lhe faz perguntas, diretamente. O que farias tu? Se você visse em seu filho o seu sangue, e ele vivendo a sua realidade, onde a violência impera e só quem tem retinas de sorte conseguem ver além do que está posto, o que você faria? Você aguentaria a pressão ou preferiria crer em Deus e entregar sua sorte?

Aos jornais

Eu deixo meu sangue

Como capital,

E as famílias o punhal

À corte eu deixo o sinal, sinal!

E então, o texto volta para a 1ª pessoa, e o eu-lírico diz que aos jornais deixará como legado seu filho, o punhal aparece aqui outra vez, para as famílias e à corte (os ricos empresários, a mídia) deixa o sinal; o sinal da cruz, em referência ao Espírito Santo. Esse sinal também pode estar referenciando os sinais do apocalipse, em uma antítese: início dos novos tempos x final dos tempos.

Finalmente…

A banda O Rappa tem como estilo a temática social urbana. O Salto é uma forte crítica ao sistema democrático brasileiro. No videoclipe, o personagem salta de cima de um prédio, cometendo suicídio, com seu filho no colo. É disso que a letra trata: da fraqueza do homem diante ao sistema capitalista, diante da mídia, da propaganda massiva e da corrupção que toma o poder.

Ainda no videoclipe, a última cena escurece enquanto uma voz, atribuída a Waly Salomão, fala: “A memória é uma ilha de edição, câmara de ecos.” É também crítica a memória do povo brasileiro, que apesar do que aconteceu no passado, elegeu novamente Fernando Collor de Mello, que ocupa hoje uma cadeira no Senado Nacional, pelo PTB de Alagoas.

Referências…

D’ONOFRIO, Salvatore, 1933. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.

http://videolog.uol.com.br/video.php?id=212057, acesso em 26 de junho de 2010.

6 comentários:

D disse...

Muito bom, se não se importar, usei sua interpretação para complementar a letra da música e dar sentido nesta página: http://rock.genius.com/O-rappa-o-salto-lyrics#. Obrigado.

Anônimo disse...

Uau! Adorei a explicação.

Tenho O Silêncio que Precede o Esporro, e canto essa música desde pequeno pois sempre gostei da força dO Rappa.
Só não entendia muito bem o que ele queria dizer.

Obrigado pelo texto (c)

Unknown disse...

Sou fã da banda e amo essa música. ..sempre quis tentar entender o sentido de tudo. Mas obrigada por toda essa aula magnifica e interpretação. ..finalmente entendi cada colocação!

Unknown disse...

Sou fã da banda e amo essa música. ..sempre quis tentar entender o sentido de tudo. Mas obrigada por toda essa aula magnifica e interpretação. ..finalmente entendi cada colocação!

Unknown disse...

Quanto a parte "aos jornais eu deixo meu sangue como capital" tenho uma interpretação diferente. Entendo que ele deixa aos jornais a notícia de sua ruína; pois, querendo ou não, jornais lucram (capital) com a desgraça alheia. Mas enfim, curti bastante a análise!

paulo fonseca disse...

Ótimo. Gostei da análise.

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